6 de março de 2017
Este artigo faz parte da série:Contos de fadas e o desenvolvimento emocional das crianças
Em mais um post da nossa série sobre contos de fadas, confira alguns dos simbolismos explorados no enredo de “Rapunzel”!
A história de Rapunzel se inicia quando ela ainda está na barriga de sua mãe, que apresenta um enorme desejo de comer rabanetes. Consumida por sua vontade, ela pede ao marido que roube os rabanetes do jardim de sua vizinha embora ambos saibam que se trata de um bruxa amedrontadora. Tudo corre bem na primeira vez, porém, quando os rabanetes acabam, o pai de Rapunzel é incitado pela esposa a roubar novamente. É aí que a bruxa o descobre e, furiosa, só aceita deixá-lo ir caso lhe prometa entregar a criança que está para nascer. O homem concorda, crente de que ele e a esposa poderão livrar-se da promessa se souberem se proteger. Entretanto, todas as suas tentativas são em vão e a bruxa leva a pequena menina para criá-la em terras distantes.
Confira aqui a adaptação da história feita para a série “Contos de Fadas”.
Esse primeiro trecho da história, além de explicar o nome de nossa personagem principal (Rapunzel, deriva da palavra em alemão para “rabanete”), pode nos levar a pensar no papel dos pais. Numa das tantas interpretações possíveis, a mãe da criança ainda é infantil demais para se tornar uma cuidadora: ela não consegue abrir mão dos próprios desejos e faz questão de comer o rabanete a qualquer custo, mesmo sabendo dos riscos que isso trás. O pai também não é capaz de colocar limite às vontades da esposa e atende a seu pedido, ainda que percebendo que esta pode não ser uma boa ideia. Atitudes como essas levam o casal a perder o lugar de pais.
Assim como em outros contos de fadas, a história de Rapunzel nos instiga a pensar sobre a relação da criança com as emoções no início da vida. Nesse momento, ainda não é possível para ela integrar na figura de seu cuidador principal, por exemplo, a mãe, qualidades positivas e negativas. É como se ela percebesse a mãe como duas pessoas diferentes: uma boa, que cuida, acolhe e ama e outra má, que não atende totalmente seus desejos e, por isso, lhe parece cruel. A bruxa representa a mãe má, mas nesse caso, sua maldade está ligada ao desejo de não se separar da filha, querendo atendê-la de modo sufocante e impedindo que ela tenha outras experiências e relações.
Como era de se esperar de uma mãe extremamente possessiva e que se nega a perceber seu bebê como outro ser, separado dela, a bruxa cria a criança em uma floresta, longe de qualquer comunidade. Ela jamais corta o cabelo da menina, o que pode ser pensado como um símbolo da manutenção do cordão umbilical, ou seja, aquilo que liga mãe e filho num só ser.
Temendo que um dia Rapunzel conheça um homem que a leve embora, a bruxa a mantém numa torre, sem portas, de onde não é possível sair ou entrar, a não ser por uma pequena janela, por meio das tranças da jovem. A bruxa afirma à garota que isso é para a sua segurança e que estranhos, principalmente os homens, são perigosos. É interessante pensar no aspecto da proteção que aparece no aprisionamento: a ideia do diferente é vista pela bruxa como ameaçadora, porém ela não percebe o quão agressiva está sendo ao tentar impedir que sua filha tenha outras experiências e construa suas próprias relações.
Apesar dos esforços da bruxa, um dia um príncipe perdido na floresta escuta a garota cantando e segue sua bela voz. Encontra a torre e vê a bruxa pedindo que a menina lhe jogue suas tranças. Atraído pela beleza da moça, ele retorna ao local pedindo que ela lhe jogue suas tranças. Surpresa ao ver um homem pela primeira vez, Rapunzel se assusta, mas acaba sendo seduzida por seu charme e doçura.
Após seguidas visitas, os jovens apaixonam-se profundamente e o príncipe pede que Rapunzel se case com ele. Os dois, então, tentam imaginar um plano de fuga. O único jeito de sair da torre seria usando as tranças da garota, mas ela tem uma ideia e diz ao príncipe que a cada visita traga consigo um novelo de seda para que ela possa trançar uma escada.
Esse momento da história pode convidar a pensar sobre a importância que tem para uma criança o contato com o mundo. Estar segura é algo importante, porém a proteção excessiva leva ao aprisionamento. Frente à impossibilidade de explorar e conhecer, a criança em desenvolvimento fica extremamente limitada e sua saída mais saudável é tentar rebelar-se contra a situação, fugindo do enclausuramento.
Certo dia, a bruxa aparece e Rapunzel deixa escapar o comentário de que para o príncipe é muito mais fácil subir por suas tranças do que para ela. É possível pensar que esse engano de Rapunzel não é totalmente inocente. No fundo, não deixa de ser uma declaração de sua necessidade de espaço, de novas relações.
Furiosa com a descoberta das visitas, a bruxa corta os cabelos da garota com uma tesoura, impedindo que o príncipe possa voltar. Essa reação mostra como a possessividade parental encara o crescimento e exploração da criança. Ao invés de serem vistos como movimentos de expansão necessários ao desenvolvimento, são sentidos como agressão e desamor. Simbolicamente, o ato violento do corte da trança remete ao corte do cordão umbilical não como uma separação, mas como uma punição.
Na versão adaptada do programa Contos de Fadas, a sugestão de cortar a trança vem do príncipe, mas a garota nega-se a romper esse “fio” com a mãe, temendo perder-se de seu próprio ser. Essa despedida dos cuidadores para viver novas experiências é algo muito necessário e difícil para todas as crianças ao longo do desenvolvimento psicoemocional, mas quando é encarado como ruptura, esse processo torna-se ainda mais doloroso.
A história segue e Rapunzel é isolada em um deserto distante. A bruxa fica, então, à espera da próxima visita do príncipe à sua amada. Quando ele vem, joga a ele as tranças cortadas de Rapunzel para que suba à torre sem desconfiar de nada. Quando o rapaz chega, a bruxa tenta furar seus olhos. Desesperado, ele se atira da janela. Não morre, mas cai sobre alguns espinhos e perde a visão.
Sofrendo, o príncipe vaga durante muito tempo, até que um dia chega ao deserto onde Rapunzel está e onde havia tido filhos gêmeos, frutos de seu amor. As lágrimas de alegria da moça caem nos olhos do amado e permitem que ele recupere a visão. Junto com as crianças, partem juntos para o reino do príncipe, onde vivem felizes.
Antes do encontro dos amantes, a vida restrita no deserto reproduzia a condição de isolamento da infância de Rapunzel: distante do mundo, sem a presença de uma figura paterna ou de outras relações. Ela, no entanto, consegue tornar-se uma mãe diferente da bruxa, aceitando a presença do príncipe e indo viver em seu reino, ou seja, suportando a ideia de que só mãe e filhos não se completam a ponto de prescindirem do mundo.