4 de fevereiro de 2019
A construção da identidade de gênero se inicia nos primeiros anos de vida de uma criança. Entenda o papel da família nesse processo.
Cada pessoa nasce com um genital que determina o seu sexo biológico, seja ele masculino, feminino ou intersexo, em casos mais raros de hermafroditismo. Conforme crescemos e entendemos quem somos no mundo, podemos ou não nos reconhecer dentro dos padrões binários que nos definem como homem ou mulher, nos apropriando de nossas personalidades a partir de características e modelos observados em sociedade.
Pouco a pouco cada indivíduo compreende suas necessidades mais íntimas e de acordo com elas se experimenta em “papeis”, o que faz parte de uma série de autodescobertas que nos acompanharão ao longo da vida e farão parte da construção de uma identidade.
Assim explica a neuropsicóloga e especialista Ana Carolina Del Nero. Em entrevista ao Catraca Livre, contou um pouco sobre o seu trabalho no Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (AMTIGOS) da USP, no qual lida diariamente com crianças que vivenciam desconfortos desde muito cedo em relação ao próprio corpo e sua identidade de gênero.
A infância é um período rico, onde as explorações são importantes para que as crianças aprendam sobre o mundo e sobre si mesmas. Tanto no ambiente escolar como dentro de casa, é o discurso dos adultos que elas têm como referência que as ensina como “devem” se comportar.
Quando oferecemos bonecas somente para meninas e carrinhos para os meninos, limitamos suas opções e designamos condutas a serem cumpridas. Nossa sociedade tem essa tendência de olhar de maneira rígida quanto à diferenciação entre o que é de um gênero e o que é de outro, sendo que as crianças são fluidas por natureza e estão se descobrindo ao longo desse caminho.
Na brincadeira, todos os objetos podem estar a serviço de aquisições valiosas que ampliam o repertório infantil. Entrar em contato com eles pode ser importante em muitos níveis para se ter um crescimento saudável.
Disforia de gênero
Em sua experiência com o ambulatório da USP, Ana Carolina conta que quando crianças não se identificam com o seu gênero de nascimento é muito comum que pais, mães e demais cuidadores cheguem até ela buscando respostas para um intenso sofrimento psíquico dos filhos.
Nesses casos, as crianças sentem precocemente (por volta dos quatro ou cinco anos de idade) que existe algo de errado com os seus corpos, que não se “encaixam” neles pelo fato de não se reconhecerem dentro dessa constituição física (meninos sentem que deveriam ser meninas e vice-versa); e isso nada tem a ver com as referências sociais que tiveram ou com os brinquedos que lhes foram oferecidos.
Diz respeito a um sentimento muito particular sobre quem são e a uma incongruência entre o sexo biológico (ou seja, como nasceram) e identidade de gênero (como se sentem), o que caracteriza teoricamente a transexualidade. Muitas dessas crianças não dormem, não comem, ficam bastante agressivas, não querem ir para a escola, dentre outros sintomas que as inquietam.
É comum que os familiares também se sintam bastante confusos e angustiados, imaginando que isso declara algum desajuste ou patologia pela qual eles podem ter sido responsáveis, ou então que essa insatisfação trará muita dor e sofrimento aos pequenos. Segundo Ana Carolina, é importante que entendam, antes de mais nada, do que se trata a disforia de gênero e que a criança não tem autonomia sobre essa escolha.
Ter apoio e segurança dentro da família faz com que ela se desenvolva de maneira mais tranquila, já que o mundo por si só lida de maneira bastante hostil com o que é diferente e destoa dos padrões de “normalidade”.
“No AMTIGOS, o cerne do acompanhamento da infância é uma reunião mensal de pais, cuidadores, tios etc. – todos os envolvidos na criação da criança são bem-vindos. Lá, eles podem dividir as angústias em relação ao ‘não saber’, porque nós não temos como afirmar se uma criança é transexual ou não; é ela quem vai dizer isso, o que só acontece geralmente quando ela entra na puberdade” – declara.
Como funciona: triagem e acompanhamento
Entenda o processo no AMTIGOS:
- Os adultos responsáveis chegarão até o serviço, e este se prontificará a fazer uma triagem para detectar se existe de fato uma disforia de gênero ou não.
- Depois, a criança passará por uma avaliação psiquiátrica, para analisar se morbidades (como ansiedade, depressão) estão envolvidas.
- Em seguida, uma avaliação psicológica é feita para avaliar como esses meninos e meninas vivenciam o seu gênero através de testes cognitivos e projetivos específicos dessa área.
- A partir daí é definida a conduta terapêutica mais adequada àquela criança. Se o caso for de padecimento intenso, o ambulatório a acolherá em terapia individual para acompanhá-la mais de perto frente a essas vivências.
No Brasil, existem apenas dois centros especializados em atender crianças com tendências transexuais: o AMTIGOS, do Hospital das Clínicas da USP, e o PROTIG (Programa de Identidade de Gênero), ligado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O AMTIGOS é formado por uma equipe de 35 profissionais – entre psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais – responsáveis por fazer uma triagem e posterior acompanhamento psicológico e psiquiátrico de crianças, jovens e adultos que chegam com alguma questão relacionada à disforia de gênero.
Mesmo que o tema ainda levante interrogações, é significativo o fato de termos começado a falar sobre isso, já que essas pessoas viveram por muitos anos à margem e a sociedade fazia de tudo para que elas continuassem invisibilizadas. Falar abertamente acerca do assunto não só valida essa vivência, como dá um espaço social importante para que se reconheçam nela.
Para essas crianças, adolescentes e adultos já é penoso o suficiente viverem diante de suas inquietações. Talvez o nosso papel seja minimizar esse mal-estar escutando suas necessidades e respeitando-as, ainda que não tenhamos condições para entendê-las perfeitamente. Isso vai desde permitir o uso do banheiro no qual se sintam mais confortáveis até chamá-los pelos nomes com que se auto intitularam nesse processo.
Leia a entrevista na íntegra no Catraca Livre.