20 de junho de 2016
Na segunda quinzena do mês de maio de 2016 houve um confronto entre facções de tráfico de drogas e a polícia em uma favela brasileira, uma das maiores do mundo. Em uma escola pública próxima, uma professora dava aula quando seus alunos a interromperam: “Tia, isso é barulho de bala.”
Ao longo dos minutos seguintes, um aluno de 8 anos descrevia o que ouvia: “Isso é metralhadora. Isso é fuzil. Isso é granada”. A professora mal tinha reconhecido que eram tiros. As crianças choravam, tentavam falar pelo telefone com familiares, entrando em estado de pânico. A aula foi interrompida para que os alunos pudessem ser acalmados.
No decorrer da tarde, noticiou-se que a favela estava “fechada”: ninguém podia entrar nem sair do local. Quando as aulas acabaram às 17h, alguns pais buscaram seus filhos e os levaram ao trabalho, para passar a noite; outros levaram as crianças e algumas provisões que os permitissem acampar em uma favela próxima com segurança, até ser possível voltar para casa; outros ainda não conseguiram sair de casa até bem depois de anoitecer. A escola fechou com cerca de 30 crianças, acompanhadas de uma professora, e todos acreditavam que passariam a noite ali. Às 21h, as últimas crianças saíram da escola com seus responsáveis e ficaram na comunidade mais próxima até perto da meia noite, quando finalmente puderam retornar às suas casas. O cenário que devem ter encontrado no caminho certamente envolvia muita destruição, buracos de bala nas paredes, encanamentos furados jorrando água, morte e tristeza entre a população.
Como uma criança deve se sentir quando é forçada a ficar dentro da escola, longe dos familiares, sem saber se estes estão bem? Medo, insegurança e ansiedade, certamente povoaram os sonos dessas crianças nessa noite. Provavelmente não pela primeira vez, nem pela última.
Quando pensamos em situações de violência, é comum pensarmos em situações mais específicas, como um contexto de guerra. Mas como é o dia a dia de uma criança que vive em um local onde a violência, do Estado e do crime, dita regras de convivência? As ações e falas dessas crianças são reveladoras de seus ambientes. Para que uma criança de apenas 8 anos consiga identificar, a quilômetros de distância, o som distinto de cada arma letal, é preciso que isso faça parte do seu cotidiano. Para que ela consiga manter a calma para diagnosticar cada som, é preciso que ela tenha naturalizado a presença de armas na sua vida.
Aqui no Toda Criança Pode Aprender, chamamos atenção com frequência para o fato de que as crianças estão o tempo todo atentas aos seus arredores, absorvendo informações a partir do que veem e ouvem, e não só do que os adultos mostram especialmente para elas. Na hora de refletir sobre ambientes precários, sujeitos aos mais diversos tipos de violência – negligência institucional, falta de saneamento básico e eletricidade, abandono do Estado, abuso de força da polícia, facções criminosas com controle do espaço e das regras, criando leis próprias -, é importante levar em consideração as crianças nascidas e criadas nesses espaços. Seus medos, suas inseguranças, seus aprendizados todos terão um impacto no futuro delas e, por consequência, de toda a sociedade.
A preservação e valorização da infância deve se estender a todas as crianças.